Parte III
Brescia – Verona
Se tudo tivesse corrido de acordo
com o previsto, o subtítulo seria “Brescia-Trento-Bolzano”. Ao invés, consegui
pegar no carro com relativa calma. Estacionei no centro histórico de Brescia e
fiquei tão orgulhosa de ter metido o carro entre outros dois numa rua em
movimento que quase tirei foto. Só não o fiz porque estava demasiado frio para
tirar as mãos dos bolsos. Itália é sempre bonita, e mesmo em Brescia havia uma
fonte maravilhosa. Reconheci-a da foto do hotel, a preto e branco nos anos
vinte, onde surgia com a água a pender em pingentes de gelo. Não me pude deter
porque tinha reuniões marcadas. Visitei os clientes – sempre muito simpáticos,
falam de Portugal com carinho. Falam na crise em Itália, falam nos estragos que
o voo Ryanar de Bergamo tem causado, porque as pessoas arranjam-se sozinhas
para viajar.
A meio da manhã insiro um novo
endereço no GPS e vejo que é uma morada a 45 minutos do centro histórico de
Brescia, na direcção de Milão. Entendi que algo estava mal, porque sabia que
tinha organizado as visitas de modo a tornar as deslocações cómodas. Entendo
que não posso fazer esse desvio porque ainda tinha várias outras reuniões a
200km daqui. Arranco para o escritório da Avis a fim de devolver o malfadado
GPS que me ia matando na primeira noite. Demoro meia hora a dar com o sítio
(que segundo o GPS era dali a 10 minutos) e não mo aceitam. Ao telefone haviam
dito que não havia problema, em pessoa dizem-me para o deixar juntamente com o
carro em Siena no dia de entregá-lo e explicar a situação. Entretanto liga o
cliente do escritório a 45 minutos a dizer o que eu já imaginava – que o GPS
estava bêbedo e que ficam no centro histórico. Dá-me outra morada (nº 100) e
arranco. Daí a quinze minutos, conforme planeado, paro na rua que me havia
dado. Porém a rua termina no número 38. Decido parar o carro e atravessar uma
avenida enorme (onde o trânsito se faz à italiana – carros, motas, pessoas de
bicicleta) e descubro que do outro lado a rua tem outro nome. Já não é a mesma.
Telefono ao senhor e entendo que inventou aquele número de porta. É um milagre
que o GPS me tenha levado até ali. Estaciono o carro e a máquina come-me 2,40€
por uma hora, e o arrumar fica com mais 0,60€ sem factura só porque tenho
demasiado medo que se vingue no carro alugado.
Falamos durante um bocado e
entendo que é hora de partir para Trento. É hora e meia de viagem na
auto-estrada e às quatro e meia o sol põe-se. Não quero conduzir de noite
porque é ainda mais aterrorizador. Então despeço-me e arranco, com o GPS
instalado no banco do pendura sobre uma pilha de livros e documentos, a fim de
ficar facilmente no meu ângulo de visão. Não demora muito para que eu entenda
que o Google maps do iPhone está mais perdido do que eu. Manda-me virar à
esquerda numa rotunda, como se não fosse rotunda, e mais adiante manda-me
encostar à direita e manter-me à direita, quando vejo que estou a meter-me para
a auto-estrada em direcção a Milão, quando deveria ir para a direcção à
esquerda, que seria Veneza. Entro na auto-estrada para Milão porque é tarde
demais para voltar atrás. Agarro o ticket. O GPS diz para sair na primeira
saída e voltar a entrar em Brescia. Assumo que fui eu que ouvi/vi mal. Saio, o
ticket dá 0,60€ só pela brincadeira. Volto a entrar em Brescia. Volto a sair
para a auto-estrada. Volta a mandar-me para a direita, para Milão. E eu
convencida que a direcção nunca poderia ser essa, meto-me para Veneza (era a
direcção certa) na esperança que ele abra a pestana e actualize o percurso.
Durante os primeiros dois ou três quilómetros insiste que devo sair. Depois cala-se e diz que tenho
37 km nessa estrada (A4) antes de virar para a A22 em direcção a Trento.
Respiro fundo. Meto-me na faixa do meio sempre que há faixas de aceleração à
direita. A certo ponto decido que me vou meter atrás de um tolleyzeco que vai a
70 na auto-estrada e sigo assim a minha vida, em tranquilidade, durante vinte
minutinhos. Mas é sexta-feira e a auto-estrada está cheia de camiões. Começam a
acumular-se atrás de mim. A ultrapassar-me e ao trolley. A dado momento tenho
quatro ou cinco à minha esquerda, o trolley à frente, um camião cujos faróis
emolduram perfeitamente o meu retrovisor, coladíssmo a mim, e carros a entrarem
na faixa de aceleração à esquerda. Mentalizo-me que vou morrer e pergunto-me se
disse tudo o que devia a quem devia dizê-lo. Começo a pensar se fiz tudo o que
podia pelas minhas miúdas, lembro-lhe de alguns detalhes práticos e legais que
poderia ter tratado. Ganho coragem e, por uma brecha, safo-me pela esquerda.
Fujo dos camiões, assim que posso meto-me na faixa mais à esquerda e vou a
rasgar caminho. Para trás ficam os camiões e as suas buzinadelas. Lembro-me de
ter travado a dado momento, quando o de trás se colou praticamente à minha
bagageira, porque tinha acelerado tanto para fugir dele que estava em cima do
trolley. Quando dou por mim tenho os olhos húmidos de lágrimas. Prometo-me que
choro mais tarde, já vou hiper tensa, só me falta chorar e não ver nada. Além
disso, tenho um Audi encostado a mim, a querer passar-me por cima, e tenho de
arremeter para a direita. O Audi lá vai, desaparece num ápice. Se eu ia a 110
ele seguramente vai a 150. Por fim surge a saída para Peschiera, o sinal da
estrada de saída da auto-estrada ordena um máximo de 40km/h, mas eu vou a 70 e
o carro atrás do meu vai de novo colado e a apitar. Passo pelas caixas para
pagar, estendo uma mão à senhora com o dinheiro enquanto olho para o GPS e vejo
um cruzamento (manda-me virar à esquerda) e olho para a frente e vejo outra
rotunda…
Tento ler o nome da cidade para
onde o GPS me manda, a fim de encontrar a saída na rotunda. Nada. Engano-me,
quando dou por mim estou de novo na auto-estrada e na mesma direcção de onde
vinha. A faixa de aceleração está prestes a terminar, tenho um carro atrás de
mim com prego a fundo e da esquerda vários carros passam a voar. Lembrando-me
de outra experiência, entendo que se a faixa terminar tenho de parar, não me
posso atirar para a frente dos carros que vêm da esquerda. Mas o que está atrás
de mim já vai a apitar e eu ainda só dei um cheirinho no travão. Atiro-me atrás
do carro que acabou de passar, antes que o novo passe. Corre mais ou menos bem
para mim, que já estou a circular. Mas o carro à frente do qual me pus apita, e
o que vinha atrás de mim na faixa de aceleração também fica a apitar. E eu
entendo que não sou me vou matar, como vou levar alguém comigo. E é então que
decido: perante o próximo erro, tenho de desistir. Não posso insistir mais.
Tentei o mais que podia. Arrisquei mais do que o meu tempo, a minha vontade, a
minha energia. Arrisquei a minha vida porque, até esse momento, não tinha
entendido que estaria realmente em risco. Mal pus os pensamentos em ordem,
passaram dez minutos e a primeira saída que me surge diz “Verona Aeroporto”.
Verona é onde era suposto estar no dia seguinte. No dia seguinte era suposto
guiar de Trento para Verona. Entendo que é um sinal. No aeroporto à rent-a-car.
Logo, posso desfazer-me do carro lá. Posso pedir ao hotel onde ia ficar que me
acolha uma noite antes. Ligo ao hotel de Trento, em pranto, e explico que não
consigo. Não dá. Não tenho modo de chegar lá, lamento imenso. Ele diz que
entende. É a voz de uma estrela ao telefone. Diz-me que a minha decisão é sábia
e que é o proprietário do hotel. Vai cancelar tudo sem gastos. Se pudesse, ia
buscar-me, mas é longe. Se pudesse, reconfortava-me, mas é longe. Agradeço.
Diz-me que não sabe mexer com certas tecnologias, que cada um tem as suas
dificuldades. Lá porque toda a gente guia, não significa que seja fácil. E
lembro-me de coisas que me são fáceis mas que nem todos conseguem fazer, como
escrever. Então a voz dele acalma-me e consigo delinear um plano na cabeça: vou
entregar o carro. Depois vou pegar nos malões enormes e ligar ao hotel de
Verona. Depois vou pedir desculpas às pessoas que ia visitar. Vou visitar uma
delas no dia seguinte de comboio, se me deixar. À outra vou mandar um postal
com uma graça qualquer. Vou apanhar um autocarro e vou para o hotel. Fico lá
nos próximos dias, a respirar e a organizar os próximos dias. Certo que será
mais difícil andar de transportes públicos com as malas, mas não será
impossível.
No instante em que assino a
entrega do carro, a vida começa a fazer sentido. A senhora oferece-se para ir
ela buscar o carro ao parque onde o estacionei. Fala comigo como se fosse filha
dela e elogia-me a maturidade. Digo-lhe, aos soluços (aqueles do pós-choro),
que achava que era mais capaz. Ela diz-me que o importante foi a maturidade com
que assumi que não conseguia. Que o resto paciência. Explico que esperei, a
todo o instante, que alguém me viesse tirar o carro da mão e me proibisse de
conduzir, pelo bem de todos. Diz-me que trabalha no aeroporto mas que tem medo
de aviões e nunca andou de avião. Nem sei o nome dela…
As peças começam a encaixar-se.
Primeiro o aeroporto é-me oferecido. Depois a senhora ruiva e amorosa do rent-a-car.
Primeiro o senhor não sabe mexer em telemóveis. Só sms e chamadas. Depois a
senhora que vê os aviões a passar mas nunca andou neles. Dois anjos.
Em seguida o hotel diz-me que tem
vaga, se quiser posso ir um dia antes e ficar por três noites. Explica-me que
só tenho que apanhar um autocarro, e depois outro. Em meia hora estou no hotel.
Entro no aerobus tão contente que as malas não me pesam nada. Apesar de o
motorista me oferecer ajuda, subo a maior. Vou a rir-me. Há um dia e vinte
horas que não me ria (é o tempo em que tive o carro, segundo o recibo).
Sento-me perto do motorista e a primeira rapariga que entra, com todo o
autocarro livre, escolhe sentar-se ao meu lado e participar na conversa. Vamos
a rir-nos os três até ao centro de Verona. Ele diz-me que está “naquele buraco”
de conduzir sempre o mesmo percurso há vinte e cinco anos. A rapariga diz-me
que veio trazer o pai ao aeroporto e que vai voltar para Bolzano. Está
stressada, é bonita mas tem muito rímel. Tem os olhos húmidos e diz que está
muito cansada. São tão simpáticos e ficam tão contentes por eu adorar Itália…
quando desço do autocarro em Verona Porta Nuova, tenho um a levar-me a mala
enquanto eu levo a outra e o terceiro me espera do passeio a sorrir. “Vieni,
vieni”. Oiço as palavras do Pinkerton para a Madame Butterly. L’amore non uccide, ma da vita! O senhor
motorista aponta o sítio exacto de onde sai o próximo autocarro, e em trinta
segundos o mesmo chega e eu arranco.
Nessa noite caminho quinze
minutos até ao centro de Verona. Na Piazza del Duomo, admiro a fachada da
catedral. E de repente a estátua de um anjo aponta a porta. Lembro-me da minha
escultura de anjo favorita, a que está logo à direita quando se entra na Igreja
de Santa Maria degli Angeli e dei Martiri, em Roma. Emociono-me. Estou onde
tenho de estar.
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