sábado, 3 de dezembro de 2016

Il Viaggio in Rosa - Parte III

Parte III

Brescia – Verona

Se tudo tivesse corrido de acordo com o previsto, o subtítulo seria “Brescia-Trento-Bolzano”. Ao invés, consegui pegar no carro com relativa calma. Estacionei no centro histórico de Brescia e fiquei tão orgulhosa de ter metido o carro entre outros dois numa rua em movimento que quase tirei foto. Só não o fiz porque estava demasiado frio para tirar as mãos dos bolsos. Itália é sempre bonita, e mesmo em Brescia havia uma fonte maravilhosa. Reconheci-a da foto do hotel, a preto e branco nos anos vinte, onde surgia com a água a pender em pingentes de gelo. Não me pude deter porque tinha reuniões marcadas. Visitei os clientes – sempre muito simpáticos, falam de Portugal com carinho. Falam na crise em Itália, falam nos estragos que o voo Ryanar de Bergamo tem causado, porque as pessoas arranjam-se sozinhas para viajar.
A meio da manhã insiro um novo endereço no GPS e vejo que é uma morada a 45 minutos do centro histórico de Brescia, na direcção de Milão. Entendi que algo estava mal, porque sabia que tinha organizado as visitas de modo a tornar as deslocações cómodas. Entendo que não posso fazer esse desvio porque ainda tinha várias outras reuniões a 200km daqui. Arranco para o escritório da Avis a fim de devolver o malfadado GPS que me ia matando na primeira noite. Demoro meia hora a dar com o sítio (que segundo o GPS era dali a 10 minutos) e não mo aceitam. Ao telefone haviam dito que não havia problema, em pessoa dizem-me para o deixar juntamente com o carro em Siena no dia de entregá-lo e explicar a situação. Entretanto liga o cliente do escritório a 45 minutos a dizer o que eu já imaginava – que o GPS estava bêbedo e que ficam no centro histórico. Dá-me outra morada (nº 100) e arranco. Daí a quinze minutos, conforme planeado, paro na rua que me havia dado. Porém a rua termina no número 38. Decido parar o carro e atravessar uma avenida enorme (onde o trânsito se faz à italiana – carros, motas, pessoas de bicicleta) e descubro que do outro lado a rua tem outro nome. Já não é a mesma. Telefono ao senhor e entendo que inventou aquele número de porta. É um milagre que o GPS me tenha levado até ali. Estaciono o carro e a máquina come-me 2,40€ por uma hora, e o arrumar fica com mais 0,60€ sem factura só porque tenho demasiado medo que se vingue no carro alugado.
Falamos durante um bocado e entendo que é hora de partir para Trento. É hora e meia de viagem na auto-estrada e às quatro e meia o sol põe-se. Não quero conduzir de noite porque é ainda mais aterrorizador. Então despeço-me e arranco, com o GPS instalado no banco do pendura sobre uma pilha de livros e documentos, a fim de ficar facilmente no meu ângulo de visão. Não demora muito para que eu entenda que o Google maps do iPhone está mais perdido do que eu. Manda-me virar à esquerda numa rotunda, como se não fosse rotunda, e mais adiante manda-me encostar à direita e manter-me à direita, quando vejo que estou a meter-me para a auto-estrada em direcção a Milão, quando deveria ir para a direcção à esquerda, que seria Veneza. Entro na auto-estrada para Milão porque é tarde demais para voltar atrás. Agarro o ticket. O GPS diz para sair na primeira saída e voltar a entrar em Brescia. Assumo que fui eu que ouvi/vi mal. Saio, o ticket dá 0,60€ só pela brincadeira. Volto a entrar em Brescia. Volto a sair para a auto-estrada. Volta a mandar-me para a direita, para Milão. E eu convencida que a direcção nunca poderia ser essa, meto-me para Veneza (era a direcção certa) na esperança que ele abra a pestana e actualize o percurso. Durante os primeiros dois ou três quilómetros insiste  que devo sair. Depois cala-se e diz que tenho 37 km nessa estrada (A4) antes de virar para a A22 em direcção a Trento. Respiro fundo. Meto-me na faixa do meio sempre que há faixas de aceleração à direita. A certo ponto decido que me vou meter atrás de um tolleyzeco que vai a 70 na auto-estrada e sigo assim a minha vida, em tranquilidade, durante vinte minutinhos. Mas é sexta-feira e a auto-estrada está cheia de camiões. Começam a acumular-se atrás de mim. A ultrapassar-me e ao trolley. A dado momento tenho quatro ou cinco à minha esquerda, o trolley à frente, um camião cujos faróis emolduram perfeitamente o meu retrovisor, coladíssmo a mim, e carros a entrarem na faixa de aceleração à esquerda. Mentalizo-me que vou morrer e pergunto-me se disse tudo o que devia a quem devia dizê-lo. Começo a pensar se fiz tudo o que podia pelas minhas miúdas, lembro-lhe de alguns detalhes práticos e legais que poderia ter tratado. Ganho coragem e, por uma brecha, safo-me pela esquerda. Fujo dos camiões, assim que posso meto-me na faixa mais à esquerda e vou a rasgar caminho. Para trás ficam os camiões e as suas buzinadelas. Lembro-me de ter travado a dado momento, quando o de trás se colou praticamente à minha bagageira, porque tinha acelerado tanto para fugir dele que estava em cima do trolley. Quando dou por mim tenho os olhos húmidos de lágrimas. Prometo-me que choro mais tarde, já vou hiper tensa, só me falta chorar e não ver nada. Além disso, tenho um Audi encostado a mim, a querer passar-me por cima, e tenho de arremeter para a direita. O Audi lá vai, desaparece num ápice. Se eu ia a 110 ele seguramente vai a 150. Por fim surge a saída para Peschiera, o sinal da estrada de saída da auto-estrada ordena um máximo de 40km/h, mas eu vou a 70 e o carro atrás do meu vai de novo colado e a apitar. Passo pelas caixas para pagar, estendo uma mão à senhora com o dinheiro enquanto olho para o GPS e vejo um cruzamento (manda-me virar à esquerda) e olho para a frente e vejo outra rotunda…
Tento ler o nome da cidade para onde o GPS me manda, a fim de encontrar a saída na rotunda. Nada. Engano-me, quando dou por mim estou de novo na auto-estrada e na mesma direcção de onde vinha. A faixa de aceleração está prestes a terminar, tenho um carro atrás de mim com prego a fundo e da esquerda vários carros passam a voar. Lembrando-me de outra experiência, entendo que se a faixa terminar tenho de parar, não me posso atirar para a frente dos carros que vêm da esquerda. Mas o que está atrás de mim já vai a apitar e eu ainda só dei um cheirinho no travão. Atiro-me atrás do carro que acabou de passar, antes que o novo passe. Corre mais ou menos bem para mim, que já estou a circular. Mas o carro à frente do qual me pus apita, e o que vinha atrás de mim na faixa de aceleração também fica a apitar. E eu entendo que não sou me vou matar, como vou levar alguém comigo. E é então que decido: perante o próximo erro, tenho de desistir. Não posso insistir mais. Tentei o mais que podia. Arrisquei mais do que o meu tempo, a minha vontade, a minha energia. Arrisquei a minha vida porque, até esse momento, não tinha entendido que estaria realmente em risco. Mal pus os pensamentos em ordem, passaram dez minutos e a primeira saída que me surge diz “Verona Aeroporto”. Verona é onde era suposto estar no dia seguinte. No dia seguinte era suposto guiar de Trento para Verona. Entendo que é um sinal. No aeroporto à rent-a-car. Logo, posso desfazer-me do carro lá. Posso pedir ao hotel onde ia ficar que me acolha uma noite antes. Ligo ao hotel de Trento, em pranto, e explico que não consigo. Não dá. Não tenho modo de chegar lá, lamento imenso. Ele diz que entende. É a voz de uma estrela ao telefone. Diz-me que a minha decisão é sábia e que é o proprietário do hotel. Vai cancelar tudo sem gastos. Se pudesse, ia buscar-me, mas é longe. Se pudesse, reconfortava-me, mas é longe. Agradeço. Diz-me que não sabe mexer com certas tecnologias, que cada um tem as suas dificuldades. Lá porque toda a gente guia, não significa que seja fácil. E lembro-me de coisas que me são fáceis mas que nem todos conseguem fazer, como escrever. Então a voz dele acalma-me e consigo delinear um plano na cabeça: vou entregar o carro. Depois vou pegar nos malões enormes e ligar ao hotel de Verona. Depois vou pedir desculpas às pessoas que ia visitar. Vou visitar uma delas no dia seguinte de comboio, se me deixar. À outra vou mandar um postal com uma graça qualquer. Vou apanhar um autocarro e vou para o hotel. Fico lá nos próximos dias, a respirar e a organizar os próximos dias. Certo que será mais difícil andar de transportes públicos com as malas, mas não será impossível.
No instante em que assino a entrega do carro, a vida começa a fazer sentido. A senhora oferece-se para ir ela buscar o carro ao parque onde o estacionei. Fala comigo como se fosse filha dela e elogia-me a maturidade. Digo-lhe, aos soluços (aqueles do pós-choro), que achava que era mais capaz. Ela diz-me que o importante foi a maturidade com que assumi que não conseguia. Que o resto paciência. Explico que esperei, a todo o instante, que alguém me viesse tirar o carro da mão e me proibisse de conduzir, pelo bem de todos. Diz-me que trabalha no aeroporto mas que tem medo de aviões e nunca andou de avião. Nem sei o nome dela…
As peças começam a encaixar-se. Primeiro o aeroporto é-me oferecido. Depois a senhora ruiva e amorosa do rent-a-car. Primeiro o senhor não sabe mexer em telemóveis. Só sms e chamadas. Depois a senhora que vê os aviões a passar mas nunca andou neles. Dois anjos.
Em seguida o hotel diz-me que tem vaga, se quiser posso ir um dia antes e ficar por três noites. Explica-me que só tenho que apanhar um autocarro, e depois outro. Em meia hora estou no hotel. Entro no aerobus tão contente que as malas não me pesam nada. Apesar de o motorista me oferecer ajuda, subo a maior. Vou a rir-me. Há um dia e vinte horas que não me ria (é o tempo em que tive o carro, segundo o recibo). Sento-me perto do motorista e a primeira rapariga que entra, com todo o autocarro livre, escolhe sentar-se ao meu lado e participar na conversa. Vamos a rir-nos os três até ao centro de Verona. Ele diz-me que está “naquele buraco” de conduzir sempre o mesmo percurso há vinte e cinco anos. A rapariga diz-me que veio trazer o pai ao aeroporto e que vai voltar para Bolzano. Está stressada, é bonita mas tem muito rímel. Tem os olhos húmidos e diz que está muito cansada. São tão simpáticos e ficam tão contentes por eu adorar Itália… quando desço do autocarro em Verona Porta Nuova, tenho um a levar-me a mala enquanto eu levo a outra e o terceiro me espera do passeio a sorrir. “Vieni, vieni”. Oiço as palavras do Pinkerton para a Madame Butterly. L’amore non uccide, ma da vita! O senhor motorista aponta o sítio exacto de onde sai o próximo autocarro, e em trinta segundos o mesmo chega e eu arranco.

Nessa noite caminho quinze minutos até ao centro de Verona. Na Piazza del Duomo, admiro a fachada da catedral. E de repente a estátua de um anjo aponta a porta. Lembro-me da minha escultura de anjo favorita, a que está logo à direita quando se entra na Igreja de Santa Maria degli Angeli e dei Martiri, em Roma. Emociono-me. Estou onde tenho de estar.

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