terça-feira, 28 de julho de 2015

Carta aos meus filhos #85


A mamã está magoada, hoje. Alguns dias doem mais do que outros. Porque é que o amor tem de ser uma substância composta? Porque é que existem diferentes tipos de amor? Porque é que duas pessoas que se amam não podem, simplesmente, fazer-se bem a todas as horas, do modo que lhes aprouver?

Porque é que colocaram a mamã no coro? Porque é que me deram voz mas me deixaram aqui, tão longe das cabeças que vivem lá em baixo? Porque é que a vida não me permite que pare de cantar estas ladainhas sobre lutar-se pelo que se quer? Será que algum dia a mamã se vai deixar de tretas e vai tomar um rumo? Seguir o seu próprio conselho? 

Porque é que as pessoas que se amam, quanto mais se amam (na proporção em que se amam) mais condenadas estão a que se interponham mares e tempestades entre elas?

Quando ele me disse, deitados lado a lado, "não te aproximes tanto, porque assim não te consigo ver", e as pontas dos nossos narizes se separaram para os olhos se encontrarem, porque é que não parou tudo? Porque é que que não ficámos só ali? Não tinha de ser um amor daqueles que começam ou acabam guerras. Já vivi um assim e perdi. Não tem de ser um amor que nos vire do avesso e nos exponha as entranhas. Era só aquele doce encontro das nossas vozes, numa língua que não é a de nenhum de nós, enquanto ele me pedia que lhe lesse um trecho de um meu romance e eu lho lia, sabendo que não entendia. Porque não ficámos lá? Ele embalado no enigma das minhas palavras, eu no modo reverente como me ia afastando o cabelo para trás da orelha para me ver enquanto me ouvia. O silêncio ao nosso redor, a paz, um instante que não acabava mais, que pareceu eterno, enquanto eu lia estendida de barriga e ele afastava as mangas do pijama para me poder mexer no cabelo.

Porque não ficámos perante aquela montra de doces de massapão, indecisos, enquanto insistias para que eu pedisse tudo o que quisesse, e eu o pedia por mim e por ti, porque sabia que fingias um controlo que a tua gula contrariava?

Porque não ficámos naquele beijo sobre as pipas, em que não cessávamos de nos procurar outra vez, em que o teu telefone não tocou e eu não tive de cruzar os braços e esconder os olhos húmidos atrás do cabelo?

Ou porque não ficámos naquele banho em que reparei que a tua pele tem manchinhas cinzentas e me tentaste explicar o efeito da idade sobre ela por caminhos sinuosos, porque não sabias dizer-me o nome da doença.

Se tivesse de escolher um momento e ficar lá para sempre, mesmo sem os foguetes de um amor tchan nem os dissabores de um amor plim, escolhia aquele em que abrimos os casacos em simultâneo, naquela noite madrilena em que os termómetros andavam pelos quatro graus, e nos rimos um do outro. Lembras-te? Tínhamos prometido vestir-nos às escondidas um do outro, eu na casa de banho e tu no quarto. Depois caminhámos até ao restaurante e sentámo-nos perante as bebidas. Só quando a nossa mesa ficou vaga é que finalmente revelámos como nos havíamos aprumado para o outro. Lembras-te de dizeres que éramos as pessoas mais bonitas do bar? Sabes que tinha o meu batom bordô, depois se dias em que nunca usei maquilhagem, porque urgia que me aceitasses como sou e que acordasses ao lado do rosto com que te havias deitado?

Lembras-te de como gozei com o teu papillon, mas de olhos rasos de lágrimas porque te achava tão estupidamente adorável nesse esforço para me impressionar?

Lembras-te de dizeres que tinhas saudades minhas, e eu respondia "eu também", e tu dizias "não tens de o dizer só porque to disse primeiro". E como ficava surpreendida por não veres a minha urgência em provar-te que era verdade...

Sabes, não estou certa do momento em que acabámos. Não foi quando me beijaste de madrugada e foste até à porta, de trolley em punho, e eu não consegui levantar-me da cama para te ver desaparecer no corredor. Não foi quando disseste que não tinhas tempo para falar comigo.

Acho que foi daquela vez que tentaste explicar-me que a tua vida era hiper ocupada e que um dia, quando o tempo te sobejasse, voltarias para me fazer feliz. Fiquei presa à tua despedida, às tuas últimas palavras ao deixar-me em silêncio:

- Goodnight princess.

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