11
de Agosto 2014
Meus caros,
No rescaldo do sucedido com o
inspirador actor Robbin Williams, que possivelmente foi levado pela depressão, ganhei
coragem para me confessar.
Desde meados do ano anterior que
ando a debater-me com esse mesmo fantasma. Não soube de imediato que melancolia
era aquela. Sabem quando se está deitado ou sentado, à procura de uma posição
mais confortável, sem que nos sintamos bem de modo algum? Foi mais ou menos
isso.
Primeiro um certo grau de
insatisfação, um pouco de desencanto a juntar-se à receita, uma certa perda de
identidade. Mudei-me para a Alemanha em busca de mim própria e de “uma vida
melhor”. Depois entendi que lá estaria pior do que cá. Durante a semana que
estive na Alemanha, jamais dormi. Todas as noites tinha a estranha percepção de
que alguém entraria em casa a qualquer momento para me fazer mal. Dormia com um
olho aberto e outro fechado, julgava ouvir passos nas escadas e até respirações
arrastadas no andar debaixo.
Quando regressei a Portugal, passei
a dormir durante o dia, além da noite. Estava sempre cansada e sem energia. Se estivesse
fora de casa, sentia um terror irracional a respeito da possibilidade de virem
para me fazer mal. Eu, que sempre disse à boca cheia não ter medo de coisa
alguma.
De repente a minha força estava
quebrada. E eu chorava. Chorava por não me reconhecer. Chorava porque não via
saídas em direcção àquilo que eu queria ser.
Depois apaixonei-me e vivi uma
história de amor bonita. Enquanto esse homem me beijava os dedos ressequidos do
frio do inverno passado, não chorei. Mas a distância e as dificuldades deitaram-me
novamente abaixo. Mesmo estando com ele não conseguia ser feliz. Não conseguia
evitar cobri-lo de medos e de inseguranças, nem conseguia impedir-me de ir
sentar-me no chão da casa de banho de porta trancada a chorar à noite. Quando
ele me chamava, me perguntava se estava bem, limpava as lágrimas, envergonhada,
e voltava para o lado dele. “Nada, nada”.
Quando tudo acabou, em parte porque
entendi que estava a matar-nos, já estava num buraco negro de difícil saída.
Foi aí que entraram os amigos.
Aos amigos; obrigada.
O-B-R-I-G-A-D-A. Nem toda a gente passou neste difícil teste. Quem me achava
metediça, nariz no ar, a precisar de umas chapadas para “ver se cresço”,
disse-mo na altura de um modo ou doutro. Nunca
ninguém me tinha visto tão em baixo, por isso foi fácil abandonarem-me.
Foi fácil desistirem de mim. Não para os amigos, contudo. E, por isso, um
agradecimento infinito por terem estado ao meu lado quando nem eu era capaz de
valer-me.
Disse-lhes, aos amigos, que não
conseguia ser feliz de maneira alguma. Que não tinha projectos de futuro. Que
nada me fazia feliz nem me trazia prazer. Eles, na medida do que se entende de
alguém desanimado, tentaram dar-me motivação. Aconselhar-me a ter pensamentos
mais positivos. De repente tudo aquilo pelo qual eu deveria estar grata era
diariamente enumerado. Os livros, a casa, os irmãos, os gatos, a avó prestável,
o país em paz, a barriga cheia.
“A depressão é a doença do
pensamento”, li, e é mesmo. É como se a voz dentro da nossa cabeça tivesse
vontade própria. Fala, fala, fala. Diz que isto é difícil, aquilo é difícil, o
ontem foi complicado mas o amanhã vai ser pior. Pergunta-me se estou certa de
querer estar por cá, se não valeria mais a pena ir-me já embora. Bater a porta
e sair pela porta dos fundos.
Fui diagnosticada nas urgências de
um hospital público, num dia em que a ansiedade e as tremuras na ponta dos
dedos me impediam de ir trabalhar. Foi mais ou menos assim:
Um casal de médicos sentados perante
mim. Um homem de telemóvel em punho, que nem sequer ergueu os olhos do aparelho
para me ver entrar. Uma mulher jovem e bonita, que me fez uma série de
perguntas às quais respondi o melhor que pude:
- Tem-se sentido cansada? Check.
- Tem uma má relação com os seus pais? Check.
- Costuma chorar muito? Check.
- Sente-se desesperada? Check.
- Quer tirar férias? Check.
- Já pensou em morrer? Check.
- Mas queria só apagar-se ou faria
algo nesse sentido? Double check.
Mandaram-me para casa com receitas
de antidepressivos para seis meses. Disseram que o único efeito secundário
seriam enjoos matinais. Nunca enjoei. Ao invés, sentia o cérebro toldado o dia
inteiro. Mal consegui articular uma frase durante três ou quatro dias. No
emprego, não conseguia sobreposicionar as tarefas. Abria um e-mail e sabia que
tinha de ir ao Excel. Quando chegava ao Excel já me esquecera do conteúdo do
e-mail.
Dormia o dia inteiro. Acordava às
10:00, voltava a dormir ao meio dia, incapacitada sequer de esperar pelo
almoço. Depois acordava às seis da tarde, sem sono mas também sem qualquer
motivação para fazer fosse o que fosse. Ler? O meu hobby de sempre? Nop. Escrever? Demasiado difícil para quem está
reduzido a uma alface. Cheguei a estar na casa de banho, sentada, sem qualquer
certeza de estar ali porque acabara de fazer chichi ou porque ainda ia fazer
chichi. Desejo sexual? Nenhum. Uma alface anémona. Era o que me chamava, na
altura, numa tentativa patética de trazer algum humor sobre a situação.
Felizmente o meu patrão foi
excepcional, compreensivo e despreconceituoso. Mesmo quando eu me encolhia ante
o estigma de ser agora uma doente do foro psiquiátrico, o meu patrão nunca me
recriminou nem pressionou. Mandou-me para casa nesses dias em que mal conseguia
abrir os olhos.
Com as semanas, aprendi a controlar
o sono e todos os outros efeitos se atenuaram. Já fazia a minha vida com
normalidade há dois meses quando tudo regressou, pior ainda.
Quando comecei a tomar esses
comprimidos, esse Escitalopram, não conseguia sequer soltar uma lágrima.
Imaginem a situação; alguém vos diz “a tua mãe morreu”, e eu tinha uma vaga
noção de que isso é grave e que, não fossem os comprimidos, cairia de joelhos
em lágrimas. Ao invés acenava e perguntava o que deve ser feito agora. Estava
seca de lágrimas e de emoções.
O escritor norte-americano, de
origem mexicana, Francisco X. Stork (Marcelo no Mundo Real), está a escrever um
livro sobre uma jovem a combater a depressão. Perguntou-me se seria capaz de me
apaixonar por alguém estando doente desse modo. Sim, é possível apaixonarmo-nos
por alguém tendo depressão. Mas é impossível apaixonarmo-nos tomando antidepressivos.
Os nossos sentimentos ficam reduzidos à básica noção de certo e errado. Sabemos
quem esteve sempre ao nosso lado e quem nos causou mal. Mas a complexidade de
um amor? Não. Ou talvez seja só eu, que seria incapaz de submeter um homem aos
altos e baixos deste meu naufrágio.
Tendo voltado a chorar, a querer
desaparecer, e tendo os meus amigos a assistirem-me de perto e a revezarem-se
para olhar por mim, foi óbvio que os antidepressivos que me passaram não
estavam a funcionar mais.
Por esse motivo, voltei ao
Psiquiatra.
“Tenho vinte e quatro anos e vou ao
Psiquiatra”. Na sala de espera havia sobretudo homens de meia-idade. Apesar de
o médico ser privado, eles entravam e saiam com rapidez da sala, munidos de
receitas. O psiquiatra tem, decerto, mais de setenta anos. Não acredita em
psicoterapia. Não me perguntou absolutamente nada da minha vida. “É feliz?”,
“Morreu-lhe alguém?”, “Foi despedida?”, “Sofreu uma separação recente e
difícil?”. Nop, nop.
“Dorme bem?”, “Sente-se nervosa?”,
“Tem a certeza que não quer baixa?”. Depois perguntou-me, por curiosidade, o
que faço. Ao ouvir “turismo”, dispara a sua opinião sobre os eventos da faixa
de Gaza. Estávamos em Julho.
Lá fui aviar-me do novo kit.
Antidepressivos em dose dupla, anti-ataques de pânico e comprimidos SOS, para
cada vez que a vida ameace não fazer sentido eu atire de imediato um para
debaixo da língua. Depois adormeço, encerro a fealdade e acordo com passarinhos
a cantar e sol no céu.
E o choro? A cabeça quase explode,
na nuca. E os pensamentos? Não controlo ainda nenhum deles. Seguem vias
demasiado obscuras para a pessoa que eu costumava ser.
A minha maior preocupação é esconder
todo este desespero, toda esta sensação de final de linha, da minha pobre
avozinha. Ela não entenderia nem aguentaria ver-se obrigada a estar ao meu lado
agora. E as minhas irmãs. Não quero que me vejam assim. Não quero que saibam
aos oito e aos catorze anos, como eu também não soube até aos vinte e quatro, o
que acontece com uma pessoa que perde a força de vontade e o desejo de viver.
21
Outubro 2014
Agora estou bem. Reduzindo a dose
absurda que o médico me passou, sorrio. Foi a andar na rua que, primeiramente,
senti um rasgo de amor. Pensei "voltei a amar”. Depois, dias mais tarde, a
minha mãe disse-me, a meio da semana ao telefone, que estava a pescar. Ri-me
sozinha. Era algo muito meu, rir-me sozinha, e pensei algo do género “Bem-vinda
de volta, Célia”. Voltei do submundo, não hajam dúvidas.
Estou forte, de pé, feliz, ainda a
recuperar, ainda medicada, mas a apreciar cada instante deste renascer. Estive
num buraco tão fundo que, meses depois, tudo o que me importa é mesmo agradecer
a quem saiu do seu caminho para vir tirar-me do chão, para vir limpar-me as
lágrimas, para ter coragem de me chamar de mal-agradecida quando qualquer
estilhaço poderia ser-me fatal. Obrigada a quem teve coragem de me gritar que a
vida é dura quando eu me julgava incapaz de suportar a sua dureza. Obrigada por
não terem mentido e por não me terem pegado ao colo e por não me terem
prometido que daqui por diante tudo seria mais fácil. Obrigada por me terem
garantido que tudo continuaria tal como está, eu é que ganharia nova fibra.
Para quem tiver depressão… preparem-se.
As pessoas vão chamar-vos de loucos. Vão dar estalidos com a língua, acenar
negativamente, suster um risinho cínico no canto dos lábios. Vão chamar-vos de
mimados, de malucos, de imaturos, de mal-agradecidos, de drama queens/kings.
Vão descortinar tudo aquilo que vocês têm que é digno de gratidão e vão enumera-lo
vezes sem conta. Vocês vão ficar fartos da lenga-lenga, mas quando começarem a
sentir-se melhor, essas palavras vão começar a fazer sentido. Quando se
agarrarem de novo à vida, quando a nuvem passar, serão vocês a enumerar essas
mais-valias. A voz ao fundo a vossa cabeça, a mesma que vos dizia que não iriam
a lado nenhum, que ninguém vos compreenderia, que ninguém sobraria para vos dar
a mão, dá lugar a esse sibilo. Ao das coisas boas.
Se estiverem com depressão,
lembrem-se que a voz que procura levar-vos não é a vossa, não são vocês que
estão fartos de viver aos dezasseis, vinte, vinte e quatro, cinquenta, sessenta
anos. Vocês querem viver, e têm motivos para viver, e devem extrair essa raiz
má que se apodera do vosso jardim. Devem acreditar que melhores dias virão, mas
que a viagem é difícil. O que vos dava prazer voltará a ser prazeroso. O prometido
remédio custa, é amargo, há muito a ultrapassar – vão conhecer os limites da
vossa mente e do vosso corpo - antes de começarem a melhorar.
Sobretudo, aproveitem este teste
para saber quem tem a sensibilidade de vos compreender (ou tentar) e de vos
amar seja como for. Agarrem-se a quem ficou, porque esses são os que não devem
deixar ir a lado algum.
E, por favor, não tenham vergonha de
falar. Falem com os vossos amigos, falem com os vossos familiares, façam
entender-se. Exteriorizem o que pensam, mesmo o que vos pareça mais absurdo.
Trabalhem sobre isso. Quando puderem não pensar, não pensem. Descansem.
Contemplem tectos, dêem-se tempo. Se ficar em casa é o vosso descanso, fiquem.
Se o vosso local de trabalho é o vosso refúgio, mantenham essa rotina intocada
para não se sentirem completamente desligados de tudo. Um pé na sociedade, um
pé na rotina de uma pessoa “comum”, podem ser um gancho para a cura.
Procurem o especialista correcto.
Nessa altura, tudo o que importa é que alguém consiga compreender-nos, não nos
julgue fracos, nem desistentes, porque só nós sabemos tudo aquilo pelo qual
lutamos e o nosso rosto não é mais do que a cara da derrota.
Um dia, prometo-vos, podem voltar a
exibir os vossos sorrisos de triunfo. Um dia, isto sou capaz de jurar, regressarão
das cinzas, passarinhos feridos, desajeitados, mas acabarão por abrir as asas e
por voltar a voar por vocês próprios.
É só uma fase. Não tem nada de
vergonhoso nem de definitivo. A mamã pensou que nunca mais voltasse a sorrir... e é ver-me de dentuça arreganhada.
Cara Célia, parabéns pelo seu testemunho. É uma voz de esperança para os que padecem uma depressão e um exemplo de coragem para os que bem sabem o que é atravessar as fases deste estado.
ResponderEliminarNão é fácil descrever algo tão marcante com a objetividade que a Célia empregou. Também por isso o meu reconhecimento.
Das suas palavras gostaria ainda de destacar uma qualidade (talvez a melhor arma para combater uma depressão), a gratidão.
Um bem haja e continue a deleitar os seus leitores (nos quais me incluo) com o seu talento.
Beijinhos,
AT