quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Carta aos meus filhos #61



Meus queridos,

O tempo voa. A prova disso é que os dias custam as passar mas as semanas sucedem-se sem novidades. Não chego a ter oportunidade de me entusiasmar com nada, porque já o desafio se encontra aos meus pés. Não tenho possibilidade de me preparar porque já é hora de entrar em cena. Nem sei as minhas falas e vou debitando o pouco de que me recordo. Os flashes já não me cegam, porque na realidade já não me importo.

Faz hoje um ano que conheci o italiano. Era um homem alto, de casaco escuro comprido, austero, de pasta na mão. Pareceu-me pouco acessível num primeiro instante. Tão sério que me custou, mais tarde, a ouvi-lo professar opiniões, a sorrir, a fazer piadas sobre os pombos que se atravessaram imprudentemente no nosso caminho em Madrid. Tão sério que me deliciou a cada vez que a sua voz roçou a rouquidão da sinceridade. E ele foi sincero comigo. A mãe sabe que ele foi sincero, decente e honesto comigo. Ainda assim, o balanço da nossa breve relação não é positivo. A vida interferiu. Interpôs-se. Ergueu vales e mares entre nós e não disponibilizou a tal manta de 3000 km para que pudéssemos assistir a filmes juntos, sob as suas malhas.

Ele teve muita paciência para mim, sabem? Ouviu-me, limpou-me as lágrimas, abraçou-me, aconselhou-me. Era um homem muito jovem e muito sábio, e a mamã aprendeu coisas importantes com ele. Não aprendemos coisas com muita gente, muito menos coisas importantes. Acabou porque ele voltou atrás, voltou a uma pessoa que não lhe dizia nada. Porquê? Por sexo? Pelo exotismo de se relacionar com uma estrangeira? Para ter casa noutro país? A mamã não sabe. Seria mais fácil entender se ela não fosse dez anos mais velha do que ele, divorciada, mãe. Se fosse uma rapariga jovem, a mãe entendia. Se fosse alguma daqulas miúdas desmioladas que tiram selfies para o instagram por aborrecimento a mãe entendia. Se fosse alguém novo a mãe entendia. Mas é alguém do passado. Ele falhou-me no momento em que mais precisava dele, para voltar a algo que sabe que não tem futuro. Segundo ele, ela mal fala inglês. Que tipo de entendimento partilham? 


Não tenho uma auto-estima tão baixa que ache que foi culpa minha. Fui eu que pus o ponto final para que as coisas não se arrastassem mais. Doía-me a saudade dele.

Tudo acabou com uma promessa de uma conversa e de um beijo. Uma conversa e um beijo que nunca vieram.

Um ano depois, esqueci o cheiro dele. Mas não a voz, e não o sorriso, e não a textura das mãos que procuravam as minhas numa qualquer viagem de comboio, nem o olhar doce que me pedia que me chegasse para lá, na cama, porque estava demasiado perto para que pudesse estudar-me os traços. A mãe amou-o. Não um amor que dure uma vida, não um amor que dure um ciclo completo de estações, mas a mãe quis amá-lo e amou-o. E ele, de mansinho, deixou-me gritando a plenos pulmões que não queria deixar-me.

O problema que a mãe teve aproximou-a mais dos seus melhores amigos. Porém, levou-mo de vez. Poderia ter sido a minha vida ou a presença dele. Levou-o a ele.

Melhor assim.

A mãe estava tão apaixonada por esse outro homem... Quando o vê (sempre na imobilidade em duas dimensões das fotografias), ainda lhe cai qualquer coisa cá dentro. É a morte de algo que nasceu de arco-íris e asas de borboleta. A mãe sentou-se numa pipa, numa qualquer bodega de Toledo, e beijou-o. E ele beijou-a. Beijámo-nos durante muito tempo. Beijámo-nos até as pessoas se cansarem de olhar, até os casacos desaparecerem dos cabides em redor, até as pessoas terminarem de almoçar e saírem, até os nossos perfumes se mesclarem. Lá fora chovia, lá dentro cheirava a vinho e a madeira. Cada um sentado na sua pipa, os nossos joelhos esgrimavam, as nossas mãos entrelaçavam-se e beijámo-nos. Durante uma eternidade que me parece agora tão breve, beijámo-nos.

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