quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Carta aos Meus Filhos #54

Se a mãe pudesse escolher que personagem ser na vida, escolheria o papel de uma qualquer actriz num filme francês. Ou melhor, a ideia que tenho do papel de uma francesa num qualquer filme. Uma mulher que não se preocupe demasiado com o perfume sem ser no momento exacto. Ou talvez esta seja a minha ideia de uma mulher francesa; alguém de cabelo meio solto, rosto limpo de maquilhagem, beleza discreta, só visível aos olhos de quem sente, não demasiado alta. Sem madeixas, sem creme hidratante nas mãos. Uma mulher simples, jovem, num mundo onde os homens fumam demais e metem demasiado perfume.
A mãe está melhor. Cinco infusões por dia, mas a mãe ignora o doutor e toma só duas. Não pode dar-se ao luxo de engolir cinco goladas de cura por dia, ou dormiria de manhã à noite.
Se sair desta bruma, saibam que foi a arte que me salvou. O livro que me tem consumido os instantes livres e um quadro sem qualquer espécie de talento promissor que ando a pintar há dois dias. Foi a escrita (que só tem existido na minha cabeça, mas que mesmo aí se desenvolve diariamente com desenvoltura).
A mãe sentiu um laivo de amor, hoje. Na realidade, sentiu dois. É estranho que não me sinta muito normal, que tenha tonturas quando me ponho de pé e que durma sestas de duas horas em sofás. É estranho que tenha destruído o meu dedo médio e ganho uma bolha do tamanho de uma moeda de dois cêntimos no polegar por tanto apertar parafusos em estantes e roupeiros. É estranho que um jarro da bisavó Norvinda, tipo bibelôt daquele azul e branco tão português, seja a minha peça favorita da estante. Fora os livros.
Como dizia, é estranho que a mãe tenha sido bafejada por algo parecido com amor hoje. Caminhava na rua, com as calças demasiado apertadas em torno das ancas, porque agora peso sete quilos a mais do que há três meses, e senti-o. O amor; um sopro na minha testa. Um líquido morno a escorrer-me pelo peito e a comover-me por um instante. Fiquei tão surpreendida que estremeci. Ao sacudir os ombros, perdi essa sensação. Mas, durante alguns instantes, ela esteve lá. Senti-o. Amei. Depois desamei. Mas, por meio milésimo de segundo, amei.

A mãe hoje, apesar de por momentos, voltou a amar.

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