segunda-feira, 7 de julho de 2014

Carta aos meus filhos #49



Meus queridos,

A vida está terrivelmente complicada, ultimamente. A mãe sabe que usou dois advérbios de modo seguidos, mas tem sido assim. Erros conscientes atrás de erros não tão conscientes. Mas a mãe está consciente; isto porque toma umas infusões de racionalismo. Umas coisas que secam lágrimas e anestesiam corações. Se o vosso pai estivesse ao meu lado agora, duvido que pudesse vê-lo. Teria, quem sabe, uma leve agitação na boca do estômago, o instinto a contorcer-se e a implorar-me que me levante do torpor e olhe. E que, olhando, veja. Mas a mãe pouco ou nada vê. Pouco ou nada sente, além do que é básico a todos os humanos.
A mãe sofre de insatisfação – e outras coisas – crónica (s). Também tem uma inclinação auto destrutiva que não passa por cigarros nem droga; é algo mais a fundo, mais íntimo. Ainda que o corpo sobreviva, a alma perece. Os tecidos, por dentro, rasgam, engelham, esfarripam-se. A mãe tem as fibras enrodilhadas nos dedos das mãos. A cada vez que procura o peito, que tacteia em busca de coração, retira a mão com mais farripas. Agulhas, no lugar do peito. A lembrança recente de que me doía a vida – onde a vida latejava em mim, doía. E, sendo tão jovem, doía tanto… Mas antes um peito de pano retalhado do que um peito descarnado.
Sem essas infusões a mãe estaria acabada. A mãe sente que está ligada a máquinas. Life support, apoio à vida, algo que sustém a vida. Se desligar a máquina, a mãe tomba da flutuação para uma fogueira de consumação.
Estar-se consumido; preocupado, inquietado, angustiado. Ser-se consumido; ser-se engolido, ingerido, aniquilado, gasto até à extinção.
A mãe deveria estar a gozar um estado de graça na sua existência. Tem um lar para montar, uma amiga que está na mesma situação. Combinamos idas à Feira da Ladra e trocamos conselhos sobre recheio do lar. A casa dela está um mimo de criatividade e imaginação. E a da mãe já vinha formatada, e a mãe queria tudo ao seu gosto, mas não vai dar. A mãe não sabe fazer-se feliz.
Perante um homem quebrado, como a mãe é uma mulher quebrada, só pode haver infelicidade. Se o homem for obscuro, marcado, amargo, frio, se tiver cicatrizes… poderia ele curar-me e eu curá-lo? A mãe costumava achar que sim. Que era um bálsamo para as feridas dele, e ele para as minhas. Mas não; somos álcool, petróleo, benzina, qualquer coisa inflamável que deita fogo ao outro. Magoamo-nos. E ainda assim, bem no fundo, a acenar, o afecto está lá. Mas a mãe não o sente; vê-o, mas não o sente. Pode ver-se um sentimento e não o sentir?
A mãe magoa todos e todos me magoam com facilidade. A mãe não sabe o que se passa consigo. Há quase um ano que não se reconhece. A vida complica a cada esquina, e a cabeça da mãe está cada vez mais incapaz de resolver puzzles.
As pessoas não valem nada. As pessoas valem tudo. Distingui-las é o problema. As que não valem nada amam-nos. As que valem tudo desprezam-nos. A distância é melhor. Jogar pelo seguro é melhor. Silenciar amores e ódios é melhor. A inconstância é melhor. Voltar atrás; arrependermo-nos, envergonharmo-nos é melhor. A mãe está a viver sem moral. Há um conflito aberto entre quem sou e quem quero ser.
Não amar é melhor.
A mãe sente que está a ser sugada para um grande ralo. A mãe é cada vez mais pequena e o ralo é cada vez maior. Só espero que, do muito de mim que está a desaparecer, não desapareça a escrita. Sem isso a mãe é uma mera carcaça.
Em “Uma Mulher Responsável”, a Leonor Sanches escreveu uma carta de alto teor erótico ao objecto dos seus desalentos. O Victor há-de chamá-la ordinária e desavergonhada. Talvez seja isso que ela é.  

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