Pequenos,
Dei por mim a entender o significado de ter-se fé. Ter fé; acreditar em algo que não se vê, do qual não se tem certezas, sobre o qual não há explicações, mas que nos é vital. Ter fé é ser-nos vital acreditar em água. A fé sustém-nos, mantém-nos suspensos no ar. É o milagre de que os pés nos permitam andar. É o milagre do equilíbrio e das proporções, a fé.
Dei por mim a entender o significado de ter-se fé. Ter fé; acreditar em algo que não se vê, do qual não se tem certezas, sobre o qual não há explicações, mas que nos é vital. Ter fé é ser-nos vital acreditar em água. A fé sustém-nos, mantém-nos suspensos no ar. É o milagre de que os pés nos permitam andar. É o milagre do equilíbrio e das proporções, a fé.
Hoje
fez-se luz na minha casa. Não sei se virão a conhecê-la, mas a 11 de Junho de
2014, a mãe escreveu uma sms onde
dizia “na minha casa”. E o electricista iluminou-me os cómodos. À noite, a mãe
tinha planeado levar o portátil para a nova secretária e escrever alguns
capítulos do novo romance, que não desenvolve. Contudo, a tia Cláudia e a tia
Ana quiseram estrear a electricidade com um filme. Pensámos muito bem no filme
a ver, o momento era solene. Então optámos pela primeira longa-metragem animada
da história do cinema; A Branca de Neve e os Sete Anões. Rimos todas e arrepiámos-nos com a malvadez daquela bruxa. Poucas coisas na vida são assim. Poucas
nos penetram na alma, poucas não descolam. Como um filme que, mesmo conhecido
de trás para a frente, ainda gera emoções. Ainda irrita, ainda encanta, ainda
indigna, ainda causa medo.
A
Josefina está ao meu lado, sentada na minha cama a observar a rapidez dos meus
dedos a escrever estas palavras. A mãe não vos sabe explicar amor. Acha que é
uma questão de fé. Olho-a e não vejo apenas uma gatinha com casca de tartaruga.
Imagino-lhe os pensamentos e as opiniões. É como se o meu espírito crítico,
assustadiço e curioso, vivesse fora de mim e ocasionalmente recuasse as orelhas
e semicerrasse os olhos quando confrontado com a bazófia humana. A mãe não se
sente sozinha quando elas estão comigo, e é-me essencial ter fé de que são mais
do que carne e necessidades. Elas também vos ficarão para a posterioridade. Um
dia a mãe estará a debater-se sobre o final a dar a estes animais.
Desaparecerão? Ficarão doentes? Terão uma daquelas doenças dos humanos? Um
cancro? Uma insuficiência renal? E a mãe terá de decidir se deve abatê-los ou
não. E vocês verão as carcaças velhas de algo que significa muito mais do que
um corpo frágil daqui a dez ou quinze anos. Estes dois animais levantaram-me do
buraco. Permitem-me amar. Amar é um entregar de armas, e os animais não as usam de volta contra nós.
Pensam
que amar é algo livre de opressões? É algo bafejado de suprema liberdade? Estão
enganados, meus queridos. As dores da vida obrigam-vos a cerrar o peito. A
conter o dique. A amar para dentro; ou seja, a amar não amando. Não
demonstrando. Não saboreando o bom do amar. O bom do querer, o bom do alívio
que é o ser-se amado de volta. A mãe não pode abrir o peito para ninguém – nem
para ela mesma. Isto faz algum sentido? Mas a mãe não pode. Não se deixa. A
decisão é já da hierarquia superior, dificilmente tenho acesso a essa chave.
Está fora do alcance do meu consciente. A mãe não pode amar [se não às gatas].
Não pode chorar se não as gatas; que ficam doentes sem que a culpa lhes diga
respeito, que se perdem porque deixei a janela aberta, que por vezes me
concedem a honra de virem sentar-se no meu colo. Não posso chorar se não a
estes seres a quem devo protecção, mesmo que não me dêem nada. Porque não posso
permitir-me, jamais, voltar a amar e a esperar amor de retorno. Não posso
eleger um poço como o único que pode fornecer-me água.
Ia
morrendo de tanto ingerir petróleo no passado, numa tentativa patética de matar
a sede.
Hoje
a mãe esteve sentada com as tias a comer pistachos, a comer nachos e a ver a
Branca de Neve e os Sete Anões.
A
mãe queria saber a opinião do vosso pai. Queria saber se ele se sentaria no
chão comigo, de costas numa almofada por estrear, e se me deixaria pousar a
cabeça no seu ombro. Depois no colo. Gostaria de saber se ele aceitaria passar
uma noite comigo num chão de uma casa vazia, que cheira a verniz e a tinta por
secar e a amoníaco e a benzina. Gostaria de saber se ele consideraria esse
recanto de chão o nosso palácio. A mãe vive de fé. Da fé de que um dia vai
poder acordar ao lado dele, com todos os meus defeitos e os dele. E que esses
defeitos sejam o porquê de nos amarmos. Tenho uma sala vazia e um gira-discos. O vosso pai dançaria comigo no eco dessas paredes ao cair da noite? Dançaria comigo a By Your Side? Seria eu capaz de prometer que nunca o deixaria, quando dei por mim a quebrar recentemente essa promessa que fiz a alguém? Seria eu capaz de acreditar, de olhos fechados, que ele estaria lá sempre para mim? A mãe não tem resposta para estas perguntas. É uma pessoa quebrada, em construção.
A
mãe sente-se diferente. Ultimamente perdeu controlo da sua mente e do seu
corpo. Uma coisa ligada à outra, mal me reconheço. A mãe parece estar a
deformar-se a um ritmo demasiado rápido para assimilar. Mas tenho fé – ou cairia
– de que voltarei a ter mão em mim. De que voltarei a amar-me e a ter orgulho
em mim. De que voltarei a poder valer a alguém, como valho à Josie e à
Valentina.
A
mãe tem medo de querer muito. O confortável é menos letal.
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