quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Carta aos meus filhos #12

Hey,

A mãe não consegue parar de pensar em vocês. Desde pequena que sempre falei de filhos, de ser mãe. Ocasionalmente tenho vagas mais intensas desse instinto. Neste momento berro-lhe várias vezes ao dia para que se cale. «Cala-te, relógio biológico!», digo-lhe. Estás bêbedo, já viste a idade do corpo pelo qual andas a soar alarmes? Vinte e três. A mãe tem vinte e três anos e ontem acompanhou uma amiga grávida a duas lojas de bebés. E foi a perdição: só não me dobrei e saí arrastada e em lágrimas, como na feira do livro de Lisboa, porque estava entre colegas de trabalho e há que fingir ser-se uma pessoa normal. Peguei num fatinho de bebé, creme às riscas (porque de súbito não me importa o género da criança nem o nome), e imaginei um bebezinho lá dentro. Sabem, quando estão tão gordinhos e encolhidos que, quando se pega na criança, as pernas esticam e a barriguinha e a fralda parece que fazem o fatinho encolher? E os ruídos de sono? As mãozinhas fechadas? As unhas minúsculas? Os olhos, que na realidade ainda mal vêem? E o cheiro do cocuruto, a calda de açúcar? E os pezinhos? E os banhos felizes? E quando, por desígnios incompreensíveis, um bebé sorri e o nosso coração dá piruetas de tão enternecido? E depois, tudo o resto? A mãe sente a vossa falta.
A mãe sempre soube, a par que o seu grande sonho é ser mãe, que é maluca. Talvez o grande sonho da mãe só seja ser mãe porque sabe que seria incapaz de vos chamar a um mundo tão vasto e tão obscuro sem garantias. A mãe sabe que, se for mãe, significa  que encontrou alguém especial, que tem um lar seguro, que protege e que é protegida. E o amanhã, nessas condições, não seria algo incerto. A mãe sabe que, para ser mãe, a sua vida tem de ser uma bênção de pequenas alegrias e circunstâncias felizes. E talvez vocês sejam só a pedra-chave desse arranjo harmonioso. Túlipas amarelas num jardim em construção.
A mãe está descansada. Receia sempre que se trate de uma calmaria antes de nova tempestade, mas está feliz e em paz. As cartas nem sequer me chamam; não há nada que queira saber ou que me inquiete. Os meus desejos repousam na Fontana di Trevi, numa moeda de libra, numa estrela cadente na Fonte da Telha - antes de ir para a Alemanha, a mãe sentou-se num telhado, junto à chaminé da vizinha, com a tia Cláudia. Vimos muitas estrelas cadentes nessa noite (afinal, era a noite delas!), mas a mãe disse-lhes que o seu desejo é um só e o mesmo de sempre, tendo já dado decerto entrada nos seus arquivos há muito tempo -, e por último foi colocado junto a nossa excelência, o Burro de bronze em Bremen. Acariciei-lhe o nariz e segurei-lhe as pernas junto aos cascos, como vi os outros fazerem. A mãe também se sentou em igrejas irlandesas, portuguesas, italianas e germânicas a expôr o mesmo pedido. Ultimamente, descobriu até que é mais cristã do que se julgava. Acreditar é uma virtude, e a mãe saiu da obscuridade da descrença para a aurora da compreensão e da fé.
Entretanto espero-vos aqui, numa Almada onde, em dias como hoje, o sol do entardecer incide sobre as pedras da calçada e causa uma cegueira e um banho de ouro dignos de um desvio de rota para serem admirados.


Hoje tive outro sonho estranho. A mãe e uma “amiga” desconhecida viviam numa casinha junto à praia. A mãe não gostava da “amiga” nem do pai dela, e sentia-se meio prisioneira deles. O que estranho é que era apaixonada pelo marido da amiga. Este rosto era conhecido, mas o contexto é inesperado. Quando ele cedia aos avanços da mãe, éramos surpreendidos numa situação menos própria. Digamos que nenhum de nós tinha muita roupa vestida. A “amiga” - a mãe não faz ideia de quem seja esta figura na sua vida - ia fazer queixa ao pai da minha traição. O marido sussurrava-me que deviamos fugir dali o quanto antes. Eu fazia a mala à pressa, ansiosa por fugir com ele e deixar tudo para trás. O pai dela vinha ter comigo e perguntava-me se era verdade que traíra a filha e a confiança dele sob aquele mesmo tecto. Eu dizia-lhe, sem hesitar, que eram coisas da cabeça da filha. Precisava era de ganhar tempo até fugir.

E é isto, acordei. O que me incomoda? A traição não me incomodava. Não tinha vergonha nem lamentava ter causado sofrimento. Muito bem, é um sonho, mas a mãe estava tão cega que se abandonava a uma coisa errada e nem pensava duas vezes. Ainda mentia na cara do pobre velhote que, como a filha era paranóica e a mãe muito mais confiável, acreditava, posicionando-se do meu lado. A mãe tem que ir descobrir que raio significa isto.



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